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Instruções de como enganar a morte

Instruções de como enganar a morte

Duas semanas atrás, no dia 11 de julho, eu fiz 55 anos. A cada aniversário que passamos chegamos mais perto da morte, se quisermos olhar por este lado, e isto me levou a refletir sobre a voracidade do tempo. 55 anos! Acho que minha adolescência vai expirar e vou ter que me resignar com isso. Estamos todos caminhando, inexoravelmente, para a morte. A questão aqui é saber como cada um de nós vai lidar com isso. Como cada um de nós vai lidar com o tema morte e com o tema velhice. Velhice e morte. Abstrações contra as quais temos que lutar. E aqui explico: lutar contra não significa a não aceitação da velhice ou da morte. Lutar contra significa não se deixar abater, não se resignar. Significa não se entregar. Porque o pior da morte não é a morte em si. O pior da morte é deixar de viver. E deixamos de viver quando envelhecemos. Envelhecer na alma, quero dizer, porque envelhecer no corpo é uma realidade contra a qual não há antídoto.

Existiu uma época, mesmo que não lembremos disso, em que fomos eternos. Existiu uma época em que a finitude não fazia parte de nossa essência e que a morte existia apenas como uma história de contos de fada. Existiu uma época em que éramos indestrutíveis. Existiu uma época em que poderíamos, de fato, viver para sempre! Nesta época, vivemos todos nós como se fôssemos imortais. Nunca paramos para pensar na nossa própria morte, em como nossa existência aqui neste plano é efêmera, passageira, um nada. Vivemos todos como se fôssemos imortais. E, por sermos imortais, não nos preocupamos muitas vezes em dar amor, carinho, se fazer presente, amparar algum ente querido que esteja passando por uma necessidade. Afinal, para quê a pressa? Temos tempo para resolver pendências! Temos a eternidade para isso! Não lembramos, enfim, que nós morremos, ou que nossos entes queridos morrem. E então envelhecemos. E então fazemos 55 anos, 60, 75, 80! E então encaramos a mortalidade, e tudo muda!

Temos, todos nós, um medo irracional da morte. Digo irracional porque a morte é a única certeza da vida. A morte faz parte da vida. Caminhamos para ela, todos nós. Ela é uma etapa do processo, e também é o grande mistério: renascimento? Apenas uma passagem? Ou o fim seco e definitivo? Sinceramente, não sei dizer. Sei, isto sim, que temos medo do desconhecido. Sei que tememos a incerteza do amanhã. Mas (e sempre tem um mas) uma das melhores coisas que temos na vida é justamente o mistério, a incerteza, o desconhecimento do que vem por aí. Acordamos a cada dia com um livro fechado à nossa frente, e nunca sabemos o que está escrito na página seguinte! E é aí que está a magia! É aí que está o grande sentido de viver! É saber que não sabemos de nada, que surpresas nos rondam a todo instante. É saber que temos a cada dia inúmeros recomeços, inúmeras opções, inúmeros caminhos a serem tomados. Claro, um dia encontraremos também, em algum lugar da estrada, nossa própria morte. Mas quem disse que a morte não é apenas um novo começo? A graça é não saber!

Uma última constatação: morremos sempre no meio de uma boa história! Isto é que é injusto! Morremos sempre no meio da nossa própria história! Morremos sempre com tanta coisa ainda a assistir, tantas páginas ainda a percorrer, tanto ainda a aprender! Morremos sempre antes do tempo! Morremos antes do fim da história! Morremos antes do final! A morte é dura, injusta e implacável! Mas ela ainda não veio para mim e para vocês que leem esta crônica neste exato momento. Para nós, o tempo é hoje! A vida é agora! Não contemos os passos! Não contemos os passos já dados, muito menos os passos que faltam ser dados! Os que passaram ficaram para trás, os que faltam não sabemos mesmo até onde vão, e nem interessa! Tomemos um vinho! Brindemos! O momento é hoje! Só hoje vencemos a morte! Só hoje somos imortais! Somos imortais todos os dias de nossa vida, exceto talvez o último dia! Mas não pensemos no último dia! Hoje somos imortais!

Por isso tudo, e porque fiz 55 anos com coisas para agradecer, quero hoje falar da vida, do prazer de viver. E desejar a todos os meus amigos a imortalidade. E que aproveitemos este dom da imortalidade! Se aproveitarmos bem, então um dia, quando a morte nos encontrar numa curva do caminho (e ela sempre nos encontra), ela já não poderá nos fazer tanto mal. Quero encerrar esta crônica falando de um poema chamado Instruções Para Dar Corda ao Relógio, do poeta argentino Julio Cortázar. Este poema ensina como enganar a morte. E como enganamos a morte? Como enganar algo inevitável e invencível? Enganamos a morte, e é preciso que se leia o poema, quando nós a adiamos, quando conseguimos prorrogar o prazo de ir ao seu encontro. Enganamos a morte quando sentimos o prazer de uma brisa, quando tomamos um café saindo do fogo, quando viajamos. Enganamos a morte quando olhamos para a chuva como a um mistério. Enganamos a morte quando nos apaixonamos. Enganamos a morte quando fazemos planos. Enganamos a morte quando deixamos de temê-la. O medo de morrer nos aproxima da morte. O medo de morrer traz sua sombra sobre nós! Ao passo em que desejo a todos e a mim mesmo uma vida longa e próspera, imitando o gesto que simboliza a saudação dos vulcanianos e que traduz um significado de um grande período de vida vivida com alegria (acredito tanto nesta saudação que tenho o gesto tatuado no meu dedo indicador direito), encerro com o poema do Cortázar:

“Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora abre-se outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai-se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão. Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa ao seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância”.

Sérgio Idelano

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