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A UTI, o sábado e o sol por trás da janela

Mês passado meu pai, que tem 85 anos e nunca adoeceu na vida, sentiu-se mal, foi internado e teve que colocar um marcapasso. Por conta disso, ficou 2 dias na UTI. Seguindo um revezamento que fizemos entre minha mãe e nós irmãos, coube a mim ficar com ele no sábado durante o dia. Cheguei cedinho e lá passei toda a manhã e uma parte da tarde. Dentro da UTI, nos leitos ao redor, pessoas sofrendo e padecendo suas dores. Havia a mulher que gritava o tempo todo que queria ir pra casa. Havia outro que perguntava pelos filhos. Havia os que só crispavam a cara, em sinal de dor ou desesperança. Enquanto isso, o tempo corria lá fora, indiferente a nós ali naquela sala. Deu 10 horas e lembrei que era a hora que eu estaria chegando no Bierbrau, barzinho de cervejas especiais que vou todo sábado e onde encontro amigos queridos, a maioria deles aqui desta Corte.

Enquanto imaginava a vida lá fora, pensei em como muitas vezes reclamamos de nossa vida! Isto se torna um hábito que se repete! Não fazemos por mal! É porque é fácil reclamar! Reclamamos de tédio, de estar presos em casa, de uma viagem que não deu certo, de uma fila que temos que encarar, de coisas demais a resolver, da vida, enfim! Nunca pensamos, em nenhum minuto, em pessoas que dariam tudo para estar reclamando dessas coisas, de pessoas presas em leitos de hospital ou em camas, de pessoas presas em lugares das quais não podem sair. E mais uma vez, afirmo, não fazemos por mal. Mas seria bom, vez em quando, entendermos o quanto somos privilegiados e sortudos! Seria bom, vez em quando, darmos o real valor à nossa liberdade, à liberdade que nossa saúde permite.

Hoje, por exemplo, eu acordei com saúde, tomei meu café da manhã e rumei para o trabalho! Quando voltar entrarei pela porta da minha casa confortável, deitarei quem sabe um pouco na rede da varanda, a olhar os pássaros fazerem bagunça nas árvores do quintal, brincarei um pouco com meu neto. À noite quem sabe uma cervejinha com os amigos, assistir o futebol e jogar conversa fora. Ou quem sabe abrir minha pequena adega e pegar um vinho legal para tomar com minha esposa. Também tenho férias a planejar, viagens a programar, eventos a comparecer. Minha vida é boa! Sou um privilegiado! Mesmo assim, pode apostar sua alma como em algum momento deste dia reclamarei de alguma coisa que me aborreceu. Quem sabe do trânsito infernal? Do tempo perdido em algum engarrafamento? Do calor insuportável enquanto eu corria na beira do rio? Às vezes pela demora em alguma fila. Ou de algo que achei que afetou minha privacidade! Faço isso o tempo todo! Enfim, reclamarei da vida em algum momento desse dia. Porque é isso que fazemos muitas vezes: reclamar da vida!

E a vida é muito bonita! Por que muitas vezes pensamos o contrário? A vida é muito bonita, e não precisa de muito para provar. Basta um dia de chuva, ou um dia de sol. Basta um raio de sol furando a nuvem no fim da tarde, ou o barulho de uma onda, ou a voz de alguém que amamos. A vida é muito bonita! Por que às vezes ficamos cegos para esta beleza? Um jardim florido, um cheiro de terra molhada, uma reunião de amigos, um lugar que estamos conhecendo pela primeira vez, um sorriso iluminado, um elogio, um resultado de exame atestando saúde, uma taça de vinho. A vida é muito bonita! Basta perceber as coisas ao nosso redor. Basta sentir os átomos ao nosso redor.

Quero trazer para esta crônica um trecho do livro Alguém Lá Em Cima Te Odeia, de Hollis Seamon. Neste trecho, o protagonista, um adolescente com uma doença terminal, olha da janela do hospital para a vida que segue lá fora. É uma ficção, mas há vários casos iguais, na vida real, de pessoas que queriam apenas estar levando uma vida comum: “Olho para a colina abaixo, para a cidade de Hudson – uma porção de luzes penduradas numa corda solta até o rio. Lá embaixo, um trem está deixando a estação, seguindo ao sul da cidade. Ele soa o apito, longo e profundo. Fecho os olhos e penso em todas as pessoas naquele trem, partindo. Talvez elas estejam indo fazer compras de natal. Mas talvez os passageiros do trem estejam apenas indo visitar alguém. Talvez eles estejam indo para o trabalho. Não importa. Fico feliz em pensar neles – apenas gente comum, vivendo vidas comuns. E logo além dos trilhos do trem, o rio segue seu curso, como faz desde sempre. Os peixes nadando na água fria, fazendo o que os peixes fazem, quando o inverno está chegando. Isso também é legal”!

Então é isso! Meu pai já está em casa, graças a Deus! Ainda não era hora dele. Mas esta hora chegará, assim como chegará a hora de todos nós. Enquanto isso não acontece, lembrar que por detrás de uma janela há sempre um sol brilhando e uma vida a se viver…

Sérgio Idelano

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